terça-feira, 10 de novembro de 2015

A Palavra dos Outros:
Autores: Tony Sandoval


Tony Sandoval é conhecido pelos temas oníricos em que baseia as suas obras, e é exactamente neste ambientes que a sua arte encontra a melhor expressão. Estão editados dois livros deste autor em Portugal pela Kingpin Books, e assim sendo, a pessoa mais indicada para escrever sobre Tony Sandoval será o editor Mário Freitas.

Para verem os outros posts de Mário Freitas no Leituras de BD basta clicar no nome dele.

TONY SANDOVAL
As Serpentes da Imaginação

A obra de Tony Sandoval é marcada pelas mitologias, pelos cheiros, pelos sabores das vilas e costumes do México da sua infância. Origens que se cruzam com a Europa cosmopolita que o acolheu, com o Gótico e o Doom Metal que o inspiram e que ritmam a sua arte. A ingenuidade onírica dos desenhos de Sandoval e a suavidade da sua palete contrastam profundamente com o horror, o grotesco e o absurdo aparente das suas histórias. Porque o artista, tal como as suas personagens, clama incessantemente pelas bizarrias que procuram, em vão, esconder-se para além do limiar da imaginação.

Nascido há 42 anos na pequena cidade de Obregón, cedo o autor percebeu ser dotado de uma criatividade invulgar que o arrastava para construções narrativas bizarras que pululavam na sua cabeça. Parte para a Europa em meados da década passada e, influenciado pelas lendas e culto dos mortos tão comuns no seu país, por óbvios pastiches lovecraftianos e pelos acordes pesados da música que o inspira, inicia em Barcelona a sua colaboração com editoras espanholas, lançando as primeiras edições de El Cadáver y El Sofá e Nocturno, onde a sua obsessão pela morte e pela libertação do espírito criativo se tornam desde logo marcantes.

Em Paris, conhece o suiço Pierre Paquet, seu editor desde então, que dá a conhecer as obras de Sandoval ao público franco-belga. Em 2010, juntos colaboram em Un Regard Par-dessu L'Épaule, escrito por Paquet, num dos raros casos em que o autor mexicano ilustra uma história de outrem. Já com a reputação cimentada, é em 2012 que desponta para o estrelato com a nomeação de Doom Boy (Paquet, 2011) para o Grande Prémio de Angoulême, ano que marca também a sua primeira visita a Portugal, por ocasião da 3ª edição do Festival AniComics Lisboa, em Maio. Doom Boy sedimenta a maturidade artística atingida com Les Bêtises de Xenoxiphérox (Paquet, 2011), reforçando a simbiose entre o traço fino e solto a caneta e as cores suaves aguareladas que lhe dão corpo. Uma arte invulgar, única, feita de corpos esguios, fluídos como um líquido e dotados de enormes cabeças ovais e expressivas; um estilo singular, peculiar, dificilmente colável a influências evidentes e verdadeiro sinónimo de um artista ímpar. A história de ID, um jovem guitarrista mediano que se vê subitamente tocado por um talento divino, não parece diferir em muito da Marta de Les Bêtises... que faz um pacto com uma bruxa em troca de aptidões literárias. Porém, no que a decisão de Marta acaba por libertar o inevitável mal extra-dimensional das histórias de Sandoval (por muito que, neste caso, a personificação do mal seja uma criatura ridícula semelhante a uma pequena baleia voadora) com consequências devastadoras para a própria e para os que a rodeiam, a estrela que se acende em ID despoleta aquele que é, talvez e paradoxalmente, o menos apocalíptico dos livros do mexicano. A partir da premissa clássica da morte como catalisador, Doom Boy reflecte a "explosão" de ID como catarse do desaparecimento prematuro da sua amiga Anny, transformando-o numa lenda urbana do Doom Metal (a tal inspiração musical predominante do trabalho de Sandoval), um génio incógnito cujas gravações seminais se propagam e mitificam de ouvido em ouvido. O talento como alma eterna.

Em 2014, As Serpentes de Água marca a estreia da edição em português do autor (então a viver em Berlim) e o seu regresso a Portugal, por ocasião do lançamento do livro no Festival Internacional de BD de Beja. Mais do que qualquer outra das suas obras, As Serpentes de Água sintetiza as temáticas recorrentes das obras de Sandoval. O Rei belo de uma das facções do domínio da imaginação é aprisionado pelos seus opositores e transformado num polvo negro que esperará uma eternidade pela salvação; pela recuperação da verdadeira forma; pelo reacender da centelha da criatividade. Presentes em boa parte dos livros de Sandoval e símbolo comercial da colecção Calamari que o próprio dirige na Paquet, os cefalópedes assumem-se aqui, em definitivo, como Reis no gatilho criativo do mexicano. As Serpentes de Água é um clássico “coming of age”, um livro sobre o amadurecimento e libertação sexual, um grito libertador contra as grilhetas que o mundano e as pessoas comuns impõem aos espíritos livres. Mila é uma menina especial capaz de ver Agnès, aparentemente morta há 11 anos, mas que estará afinal prisioneira na dimensão alternativa da imaginação em que tanto da narrativa clássica de Sandoval se desenrola. Esta dimensão onírica, lar de anjos e demónios e palco de guerras milenares entre o Céu e a Terra, mais não é que o espaço privilegiado de cada personagem no seu combate pela individualidade, pela fuga à banalidade que tanto da realidade e dos seus protagonistas encerram.

Em Mil Tormentas (Kingpin Books, 2015, em estreia mundial simultânea com as editoras espanhola, italiana, suíça e polaca), o autor reforça a unicidade do seu universo autoral, cruzando subtilmente referências dos seus últimos livros e praticamente revelando que o domínio da imaginação (onde residem o “céu” e o “inferno”, consoante as crenças de cada um) é um, e um só, em todas as suas histórias. À semelhança de Mila, Lisa é uma adolescente solitária com uma obsessão coleccionista que desperta a desconfiança e a crueldade das outras crianças, e uma curiosidade inerente que a mergulhará na tal dimensão alternativa, onde sonho e realidade, vida e morte, se misturam e confundem. O equilíbrio é precário, e entre roubos compulsivos e oferendas de paz, a conclusão das narrativas de Sandoval aponta muitas vezes para o apaziguar dos demónios internos, mais até do que dos ficcionados. Não será por acaso que os protagonistas das suas histórias são, em regra, adolescentes e jovens adultos diferentes ou solitários que se debatem com as angústias e dúvidas existenciais típicas da idade. A excepção a esta regra surge em Les Échos Invisibles - editado em 2 volumes e em que a história e layouts de Tony Sandoval são servidos pela belíssima arte da italiana Grazia LaPadula – onde o protagonista, Baltus, é um fotógrafo de cerca de 40 anos, cuja vida desaba após a morte prematura da sua mulher. Mais uma vez, a morte servirá de catalisador para a descoberta de um dom, que colocará o protagonista em rota de colisão com as expectativas e perspectivas comuns sobre a vida, sobre a morte e sobre potenciais renascimentos, reais ou criativos.


Em termos artísticos, o recente Mil Tormentas é menos denso que o seu antecessor, predominando a caneta e suaves cores pastel, pontuadas apenas, aqui e ali, pelas aguarelas clássicas de Sandoval. Esta flexibilidade visual das suas obras contribui para o reforço de uma sensação de desconforto, de incerteza, quer para as suas personagens, quer para o próprio leitor, bastas vezes prisioneiros numa fina, quase imperceptível, membrana entre o sonho e a realidade. Aliás, procurar uma lógica narrativa nas histórias de Sandoval torna-se um exercício inútil. A sua abordagem insere-se antes em fogachos de sensações, em pinceladas de intenções, com uma leitura e coerência interna muito próprias que caberá ao leitor decifrar. Sandoval não é David Lynch, mas partilha com o cineasta a intercepção rotineira entre a realidade e o sonho, entre o presente narrativo e saltos temporais nem sempre perceptíveis numa primeira leitura. Mas no que Lynch é intenção, é ciência calculada, Sandoval é instinto, é pureza narrativa.


Tony Sandoval respira arte. Diria que também a transpira por todos os poros. Compartilhar com ele uma qualquer mesa de café ou restaurante é vê-lo, inevitavelmente, a rabiscar algo de belo no seu inseparável bloco de notas ou até numa toalha de mesa de papel. Se a sua infindável criatividade é o alicerce da sua arte, as pinceladas a aguarela, a café, ou até a cerveja, são a palete que dá cor a cada momento da sua existência terrena. Porque Tony sabe que um dia o seu corpo partirá, mas a sua alma e o seu talento permanecerão ad aeternum na tal dimensão conturbada da imaginação, prontos a dar mão a criadores hesitantes, que anseiem ou desesperem, até, por uma qualquer inspiração divina.

Texto: Mário Freitas

Boas leituras



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